A Mangueira se encantou com a grana do governo de Pernambuco e, no ano que vem, vai trocar o centenário de seu maior compositor por um enredo inodoro sobre o frevo. Pior para a verde-e-rosa. A medir pelo impacto do documentário Cartola - Música para os olhos, Angenor de Oliveira, morto em 1980, está mais vivo do que nunca. O filme reacendeu os refletores sobre o homem que passou dez anos no ostracismo e quase se juntou à tumba dos gênios esquecidos - não fosse a insônia do cronista Sérgio Porto que, numa madrugada de 1956, o reconheceu num boteco de Ipanema, por trás do uniforme molhado de lavador de carros.
A volta aos palcos coincidiu com outro reencontro. Cartola foi viver com Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica - flerte antigo e, a partir daí, companheira até o fim da vida. Mas ainda estamos no início dos anos 60, e o casal precisa de ajuda para garantir o teto e o pão de cada dia. A primeira solução veio da prefeitura: um casarão desocupado na Rua dos Andradas, atual camelódromo da Uruguaiana, onde o compositor zelaria pela sede da associação das escolas de samba em troca da moradia. A segunda foi idéia dos amigos: unir os dotes do músico à habilidade da esposa, cozinheira de mão cheia que defendia uns trocados vendendo quentinhas a trocadores de ônibus na Praça Mauá. Arrumou-se o segundo andar de um sobrado modesto, Rua da Carioca 53. Sob a razão social Refeições Caseiras Ltda, nascia assim, quase sem querer, o Zicartola, templo do samba carioca entre 1963 e 65.
Um botequim ao contrário
A receita já vigorava, informalmente, no casarão da Rua dos Andradas. Liderada por Lúcio Rangel, Sérgio Cabral, Lamartine Babo e Sérgio Porto (o insone do primeiro parágrafo), uma turma de intelectuais batia ponto para ouvir os sambas de Cartola e provar os quitutes de Zica. Mas havia um problema: quando a noite caía, acabava a oferta de cerveja gelada no Centro. Na Zona Sul, onde os bares avançavam na madrugada, era proibido tirar ronco da cuíca. O empresário Eugênio Agostini idealizou a fórmula da nova casa. "Um botequim ao contrário. Onde o errado seja não cantar samba e não batucar".
O Zicartola abriu as portas no fim de 1963, com um charmoso cardápio desenhado pelo sambista e artista naif Heitor dos Prazeres. Cujas letrinhas batidas à máquina dividiam as ofertas entre "O que se come" e "O que se bebe", categoria que incluía o "Uísque nacionalista", a 700 cruzeiros, e o "Uísque metido-a-bêsta", a 1.500. O sobrado logo virou ponto de encontro entre a turma da bossa nova e do cinema novo e os sambistas de morro, que andavam esquecidos e se reuniram em torno do baluarte da verde-e-rosa. Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Zé Kéti comandavam as rodas; jovens talentosos como Paulinho da Viola, que apesar da ligação com a Portela foi criado numa família de classe média em Botafogo, ganhavam ali os primeiros cachês.
O araponga na mesa ao lado
A união das duas turmas, da Zona Norte e da Zona Sul, deu origem a espetáculos marcantes como o Opinião, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale, e o Rosa de Ouro, com Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Paulinho da Viola, Araci Cortes e Nelson Sargento. As mesas ficavam cheias de universitários do CPC, o Centro Popular de Cultura da UNE, que puseram o sobrado no circuito da esquerda festiva carioca. Veio o golpe de 64 e os arapongas da ditadura militar começaram a borboletear no ambiente, onde o máximo que se ouvia era um discurso de 30 segundos contra a repressão. No livro Zicartola, de Maurício Barros de Castro, o velho Sérgio Cabral conta como expulsava agentes quase-secretos do regime. "Às vezes vinha um fotógrafo e ficávamos desconfiados e perguntávamos: 'Quem é você?' Se o cara não explicava, era posto para fora".
Também houve quem protestasse, como o finado cronista paulistano João Antônio, autor de Zicartola e que tudo mais vá para o inferno. Ignorando a origem da casa, patrocinada por uma força-tarefa de admiradores abastados, ele escreveu: "Os bem-comportados, os festivos, os 'politizantes' e os 'participantes' (...) invadiram, encheram tudo. O aperto do espaço, que era íntimo e quente, ficou chato e incômodo". João Antônio ainda atribuiu à turma da Zona Sul a idéia de levar os donos do estabelecimento ao altar, que qualificou de "populismo extremo" (dos festivos) e "presepada dispensável" (do casal).
Não se sabe se os nubentes foram consultados. O fato é que, alheio aos descontentes, o sócio-patrocinador Eugênio Agostini se cansou de ir à delegacia dar explicações sobre boêmios arruaceiros e malandros que aproveitavam o movimento para vender remedinhos proibidos. Deixou todas as cotas da casa para Dona Zica, cujo talento na cozinha só era comparável à incapacidade de negar fiado. A casa também deixava de ser novidade, e rapidamente sairia da vida para entrar na história. No endereço mítico, resta uma placa da prefeitura com a seguinte inscrição: "O casal Cartola e Zica, do samba carioca, manteve no sobrado o Zicartola, restaurante que sediou o encontro cultural entre as Zonas Sul e Norte da cidade, de 1963 a 1965, quando Paulinho da Viola recebeu os primeiros cachês de sua carreira".
Fonte Sovaco de Cobra
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